O boné

 

Ao prestar provas de vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para o ano letivo 1971, escolhi a área de Ciências Humanas. Naquela época, o candidato ao vestibular tinha apenas três opções: área de Ciências Exatas, de cor azul, área de Ciências da Saúde, verde, e área de Ciências Humanas,  vermelha.

No dia da divulgação do resultado no campus da UFSC, quando anunciaram meu nome como 518 º colocado, vibrei com um salto, um grito e um soco no ar. 

A comissão de trote tinha preparado um ‘curral’ todo enlameado onde cada calouro passava obrigatoriamente pela tesoura e pelo banho d’uma mistura de lama e talco. Fomos avisados pela comissão de que, na segunda-feira seguinte, cada um poderia buscar seu boné num posto de coleta de sangue situado à Rua Hermann Blumenau, quase esquina com a Avenida Hercílio Luz. Cada calouro teria direito a um boné de cor correspondente a sua área de conhecimento.

Segunda-feira cedo, por volta das sete da manhã, quando lá cheguei, a fila de cabeças-raspadas já dobrava a esquiva da Hercílio Luz. A “senha” para pegar gratuitamente o boné – no meu caso, de cor vermelha – correspondia simplesmente à doação de quatrocentos mililitros de puro sangue.  

Quando estava quase chegando a minha vez, havia apenas uns oito doadores à minha frente. De repente, um rapaz alto e forte, um baita alemão, apareceu saindo da sala de coleta com um boné azul na cabeça, apresentando um semblante muito pálido. Parou no alto da escada bem defronte a fila e desmoronou suavemente. Caiu desmaiado. A fila, que naquele momento já dobrava o quarteirão, diminui sensivelmente. A grande maioria das mulheres como também alguns marmanjos abandonaram o boné.

O episódio não me fez desistir de obter o boné . No sábado seguinte eu iria a uma festa de casamento de meu amigo Gonzaga, na cidade de Xanxerê. E aquele boné, além de ser motivo de orgulho, com certeza, amenizaria o impacto visual causado pelos meus pavilhões auriculares que se sobressaíam com tal corte de cabelo.

Sexta-feira à noite, o amigo Carlos Santana e eu tomamos o ônibus rumo àquela cidade do interior catarinense para prestigiar o casamento de nosso amigo em comum.

Como quase todas as festas, aquela estava repleta de boa comida, drinques apetitosos e, moças, bonitas e bem arrumadas. Logo, nós nos enturmamos com um grupo de garotas curiosas por coisas do litoral. Algumas nunca tinham visto o mar. Queriam saber por que eu usava aquele “lindo” boné vermelho. E eu cheio de grau, como meus filhos diriam hoje, tive que explicar que custou o sangue de minhas veias.

Conversa vai, conversa vem, fomos convidados (Carlos Santana e eu) por duas irmãs para dar uma volta de caminhonete e conhecer o campo de aviação que ficava um pouco retirado da cidade. Ainda era dia. Ao final de tão belo passeio combinamos um encontro na casa delas, que ficava num sítio pertinho do centro - dava pra ir a pé. Mas tinha um “porém”: o pai delas não as deixava namorar de jeito algum. E o homem era brabo!

Teríamos que namorar escondidos do pai, que, entre sete e nove da noite, estaria numa roda de jogos de carta com seus amigos.

Fomos a pé. Desconfiados. A caminhonete do pai delas não estava mais na garagem, sinal de que a barra “tava” limpa. Em casa: somente elas e a mãe.

O Carlos Santana ficou na varanda namorando a irmã mais velha enquanto eu trocava prosa no sofá da sala com a mais nova. Tinha apenas dezessete anos.

Como o tempo passa depressa nessa hora! Estávamos preocupados com o retorno do pai delas, que se daria lá pelas nove. O avançar das horas e o calor da troca de carícias e beijos causaram uma leve e momentânea tremedeira em nossos corpos.

De repente, luzes aparecem lá no pasto do sítio. A irmã mais velha fala: “Vão embora rápido porque lá vem nosso pai. Não deixe que ele os veja. Amanhã a gente se fala”. Foi uma correria. Nem beijinho de despedida teve. O Carlos Santana e eu seguimos, no escuro, por uma trilha lateral, atravessamos uma cerca de arame e mais adiante, depois do velho já ter passado, retornamos ao caminho principal. Começava a chover.

No dia seguinte, nosso ônibus partiria às nove horas da manhã, rumo a Florianópolis. E elas sabiam. Lá pelas oito e meia as duas chegaram a nossa hospedaria que ficava a cerca de trezentos metros da rodoviária. Embora não estivesse chovendo naquela hora, o forte vento anunciava novas chuvas.

Mesmo assim, coloquei o boné na cabeça, pegamos as sacolas e seguimos a pé rumo à rodoviária. Dois casaizinhos de mãos dadas.

Ao passarmos por uma ponte, um pé-de-vento tirou o boné de minha cabeça, jogando-o nas correntezas turvas do riacho. Eu ainda corri até um pouco mais abaixo e, da margem esquerda daquele riacho, vi passar, já submerso, tão simbólico boné.

 

Osli Francisco da Cunha – Setembro de 2007.

 

<----- ( VOLTAR)