O CICLO DA FARINHADA

Capítulo 1 – O CARREGAMENTO DA MANDIOCA

Ainda não havia amanhecido. Eu me encontrava num profundo sono e sonhando sonhos de criança quando fui acordado abruptamente pela voz de meu pai que me chamava para mais um dia de trabalho.

            Levanta, Zico! Vai com teu irmão pegar os bois no pasto que o pai já vai arrumando o carro.

            Num primeiro momento fiquei chateado, mas logo me animei ao lembrar que naquele dia não haveria aula. Iriam passar DDT no grupo.  

Quando chegamos, o carro de boi já estava em frente ao engenho, com o cabeçalho em cima do muchacho, a canga e a ceva em seus devidos lugares. O tamueiro que prendia a canga ao cabeçalho era feito de tiras enroladas de couro de boi e preso ao cabeçalho pela chaveia de madeira.

            Enquanto meu irmão cangava o Jardim - boi forte e gordo que mais tarde foi vendido por CR$ 11.000,00 (Onze mil Cruzeiros) para o seu Gaspar Abreu - eu levantava o canzil do lado direito para que o Lavrado, em gesto instintivo e automático, se submetesse à canga. Colocar a brocha, quem cangava o fazia, no entanto, colocar o ajojo era tarefa de gente grande - o pai.

            O carro estava pronto para buscarmos mandioca que havia sido arrancada na tarde do dia anterior lá para as bandas da grota, perto da roça de feijão. Faltavam o balaio e a travadeira. Para não haver briga, eu fui buscar um e meu irmão outro.

            Sentado na volta da cheda e com a guilhada na mão, o pai colocou os bois pela frente, pois eles já sabiam o caminho. Eu e meu irmão, em pé, cada um com a mão num fueiro - na parte que ultrapassava o nível da ceva – combinamos que ele abriria e fechava as porteiras na ida e eu na volta.

            Durante o período necessário para carregar o carro com aproximadamente 20 balaios de raiz de mandioca, os bois foram descangados e aproveitaram para pastar numa malha de capim melado que tinha no lado da roça.

            Na volta, com o peso da carga, o carro veio cantando até que o pai frouxou um cuicão de cada lado e passou sebo no rodado para que o canto parasse. Lembro-me muito bem daquela cambuquinha giratória anexa ao tampão do carro onde guardava-se o sebo. 

 

                Capítulo 2 – O PREPARO NO ENGENHO

 

            Ao chegar no engenho, a mandioca, balaio a balaio, foi levada para o raspador, tocado por mim e pelo pai. Sorte da mãe, da tia Tetéia e também nossa, que a mandioca raspava bem (a lua estava propícia) e precisava apenas decepá-la. O próprio lavrado foi cangado no engenho para tocar o sevador que era manejado pelo meu irmão mais velho. A mãe e a tia, foram lavar a massa para fazer o polvilho que resultava numa melhor qualidade se feito de mandioca e não de aipim. Naquele dia, armazenamos toda a água que saía da massa da mandioca em dois cochos. Quando os dois cochos estavam cheios, despejávamos no valo para que os peixes ficassem tontos e nós pudéssemos pescá-los para comer. Às vezes, pescávamos um balaio cheio de peixe que, após escolhermos os melhores, distribuíamos o restante para os vizinhos.  

            Aquela carrada de mandioca gerou massa prá encher duas vezes a barrica da prensa. Uma com massa lavada para fazer o polvilho e outra natural cujo resultado é uma farinha melhor. Nós ‘pequenos’, nunca reclamávamos de ter que rodar a burra para que o fuso da prensa, com seu movimento em espiral contra o tampão da barrica, secasse a massa separada por cortes de folha de coqueiro que faziam as vezes do tupitim.

            Quando a primeira barricada secou, e já colocada no cocho, peguei o maço para esfarelar um pouco a massa antes de colocá-la na muega tocada pelo meu irmão. A mãe pediu que guardássemos um pouco de massa (daquela não lavada) para, após peneirada, fazer um pouco de beijú.

            Já era quase noite, eu e a mãe ainda tínhamos que tirar o leite de duas vacas. O pai recolheu um pouco de lenha e preparou a fornalha para ser colocado fogo no outro dia pela madrugada.

 

                                                Capítulo 3 – A TRANSFORMAÇÃO EM FARINHA

 

            Mais uma noite bem dormida. O pai já havia levantado às 4:00 h para botar fogo na fornalha e nesse momento, com uma luz de querosene na mão, me chamava para eu estudar para a prova de História que teria que prestar naquela tarde. Eram 5:00 h. Comi um pouco de cuscuz com leite, peguei o caderno e fui até o engenho.

A primeira fornada já estava em andamento, tocada pela égua que pertencia à dindinha Nena. Eu, sentei no cepinho que o pai usava para se aquecer sentado à boca da  fornalha e comecei a estudar. Ainda estava escuro, a iluminação irradiada pelo fogo da fornalha não era das melhores, mas mesmo assim,  iluminava mais que a luz de querosene usada pelo pai,  pendurada num suporte de madeira preso por um arame ao teto do engenho. 

Quando o pai colocava mais lenha no fogo, além de eu perder a concentração, ainda ficava quase no escuro até que o fogo pegasse novamente. Era neste momento que eu aproveitava para descansar os olhos vermelhos da fumaça e comer um pouco de farinha quentinha que o pai acabava de tirar do forno.

O dia já havia amanhecido e eu disse para o pai que já tinha estudado o suficiente para a prova de História. Na verdade, eu tinha era decorado os pontos. O pai aproveitou a deixa e mandou que eu fosse no pasto pegar o Lavrado para tocar o engenho no lugar da égua. 

Enquanto o pai trocava de animal para tocar o engenho, eu ficava, com um rodinho na mão, fazendo as vezes do esse que nesse momento permanecia parado, mexendo a farinha do forno para que a mesma não queimasse. Procurava-se fazer a troca  sempre com fogo baixo.

Agora, tendo o Lavrado cangado com aqueles antolhos, parecidos com um sutien, para não se sentir tonto com o movimento circular e repetitivo necessário para movimentar toda aquela engrenagem do engenho, a fornada precisava ser aumentada com mais uma cuia de massa. Além de entrar um animal descansado para fornear, o boi, por ser mais forte que a égua, fazia com que a produtividade aumentasse um pouco.

Após a última fornada, fui soltar o Lavrado no pasto e na volta, apanhei algumas laranjas, que descascadas, eram abertas com chupetas para mergulhar na farinha antes de saboreá-las.

    

                                                                       Osli Francisco da Cunha – 25 de abril de 2003.

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