Patada
Cidade
situada na Grande Florianópolis, com uma altitude média de apenas dezoito
metros acima do nível do mar, desenvolveu-se ao longo das margens do rio
Cubatão. Entretanto, nos anos setenta e oitenta, Santo Amaro da Imperatriz
era banhada mesmo, e com certa freqüência, pelas águas que transbordavam
aquele rio.
Nessa
época, nós, três irmãos (eu era o do meio) que administrávamos um bar, o
“Fecha-Nunca”, morávamos numa casa com: porão, destinado a guardar os
engradados vazios e outras tralhas; piso
térreo, onde ficava o bar e a cozinha; e o sobrado, com
dormitórios e uma sacada enorme.
Numa
dessas enchentes, uma pata, arrastada pela correnteza, veio parar nos fundos
de nosso sobrado, onde passava um pequeno córrego. Embora a pata, de porte médio,
nadasse muito bem, um pequeno tronco de árvore preso a uma cerca foi a tábua
de salvação para ela. Ficou ali toda encolhida vendo as águas toldadas
passarem numa velocidade estonteante.
Vendo
a aflição daquele animalzinho indefeso, eu, sob as vistas e com o incentivo
de meus irmãos e apesar de não saber nadar direito, aceitei o desafio de
salvar a pata.
Vestindo
apenas um calção de banho todo esfarrapado, – não fazia frio, era
enchente de verão – caí na água barrenta, nadei até ela, atravessando
uma forte correnteza. Peguei-a pelas asas, firme com a mão direita e tentei
retornar nadando com o auxílio de somente uma das mãos. A mão que segurava
a pata ficara à tona para que a mesma não se afogasse. A cada braçada, o
cansaço aumentava e aquele nado desajeitado não vencia a força das águas.
Do
outro lado da margem, estavam meus dois irmãos a gargalhar. A cena
justificava.
Eu,
sentindo que daquele jeito não venceria a correnteza, resolvi nadar
normalmente com as duas mãos sem soltar a pata. Aí sim, com ela fazendo as
vezes de uma pá de remo, cheguei à margem, mas com a coitadinha desfalecida.
O
enxugamento da patinha com um pano seco, associado a um pouco de carinho,
poupou-nos de uma sessão de respiração “boca-a-bico”. Momentos
seguintes a magra pata já estava se alimentando normalmente.
O
que fazer com a pata? Procurar o dono e devolvê-la? E o meu sacrifício, como
fica? Concluímos: vamos engordá-la e fazer uma “patada”. Ensopada.
Com
pedaços de sarrafo e restos de madeira que a enchente trouxe, fizemos um
cercado na parte aberta do porão. Uma cuia com água e um cochinho de madeira
para a comida mobiliavam o ambiente em que a pata iria viver nas próximas
semanas.
No
bar e na cozinha não ficavam mais restos de comida. Sobras de sanduíches,
pastéis e almôndegas amanhecidos, tudo engrossava o pirão servido à pata,
no mínimo, três vezes ao dia. Até milho nós comprávamos.
A
pata foi ficando conhecida e sua fama se espalhou entre os fregueses mais
chegados. Ademir Claudino e o Jerônimo Gomes que, além de fregueses, eram
nossos amigos, vez por outra levavam comida para a dita.
Passadas
algumas semanas, a pata já tinha o dobro do peso inicial. “Tava” na hora.
Marcamos a patada para uma quinta à noite. Cinco pessoas: nós três irmãos,
o Ademir e o Jerônimo.
Quinta
pela manhã, fui dar à pata sua derradeira refeição. Quando cheguei no
cercado, qual não foi minha surpresa quando me deparei com uma patinha que
mal cabia na palma da mão. Uma plumagem toda amarelinha. Talvez tivesse uma
ou duas semanas de vida. A pata adulta havia desaparecido ou houvera um
processo de regressão muito perfeito.
Corri
de volta e contei a meus irmãos e aos fregueses presentes. Incrédulos, todos
foram ver e, aí, acreditaram.
Dias
depois descobrimos que, do terreiro da mãe do Jerônimo, havia desaparecido
um patinho recém-nascido.
Osli Cunha, Agosto de 2007.
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