Estória de Pescador  I  -  O anzol

 

            No fim da década de 70, logo que retornamos a Florianópolis (minha família e eu haviamos morado durante três anos em Maringá-PR), recebemos a visita de grandes amigos: Dilvo - o Polaco, e Roseli, sua esposa, um casal que reside até hoje na belíssima “Cidade Canção”.

            Era início de verão. A expectativa de quem decide passear numa “cidade-ilha” é desfrutar os prazeres proporcionados pelas atividades relacionadas ao mar.

            No dia seguinte à chegada do casal, curtimos o sol, refrescando os corpos nas belas e frias ondas da praia do Campeche, donde, à tarde, retornamos para a nossa casa na Trindade.

            Ao anoitecer, apesar de nem eu nem o Polaco dominarmos muito bem as técnicas da pescaria, aventuramos-nos a ela. Cheios de otimismo, dirigimo-nos à Ponta das Canas no norte da ilha, munidos de linhas de mão com três anzóis cada, iscas de pequenos camarões, faca, alicate, lanterna e até uma garrafinha de guaraná caçula, cujo conteúdo, posso afirmar: refrigerante não era.

Nossas esposas ficaram em casa colocando a conversa em dia, enquanto aguardavam nosso retorno para saborearem um gostoso peixinho frito.

Deixamos o carro na beira da praia e caminhamos à direita até as pedras, onde havia os melhores pesqueiros. Nenhum outro pescador. Estávamos sós. Cada um iscou seus anzóis, lançando-os ao mar.

Decorridos apenas uns três minutinhos e o Polaco, todo entusiasmado, puxou a sua linha gritando: - Catarina, traz a lanterna que tem peixe. Deixei a linha presa a uma pedra e fui auxiliá-lo.

Tu pegaste foi um lindo baiacu - falei eu.

- Isso não se come? Ele perguntou.

- Não, alguns são até venenosos. Pode soltá-lo.

Assim o fizemos.

Retornando a minha pedra de origem, peguei a linha na esperança que tivesse fisgado alguma coisa, mas nada de peixe. Seria efeito da lua cheia que, apesar do céu nublado, deixava a noite muito clara? Tão clara que pude ver o Polaco rodar a linha sobre a cabeça, como o vaqueiro faz com o laço, para lançá-la novamente ao mar. Em seguida, escutei um grito que ecoou nas pedras.

- Aaaahhhh.....aaaaai...aai...ai!.  Era o Polaco. Ao arremessar a linha ao mar, o primeiro anzol foi. O segundo também. Mas o terceiro, que não era pequeno, ficou cravado no seu dedo médio, aquele bastante usado no trânsito. Fui socorrê-lo.

Num primeiro momento, tentei retirar o anzol puxando-o de volta, mas a fisga tinha entrada na carne. Ui, quem não se arrepia ao lembrar daquela cena? Não consegui. A linha atrapalhava. Então pedi que encostasse a linha numa pedra e aí pude cortá-la bem junto ao anzol.

O Polaco tremia. Também, não era pra menos, coitado. Agora, apenas com o anzol pendurado em seu dedo, fizemos uma segunda tentativa. Peguei o alicate e tentei retirá-lo. Em vão. Só se arrancasse o dedo junto. Desistimos. Não só desistimos de tentar a retirada do anzol como também da pescaria. Porém, antes jogamos, por fora e pra dentro, um pouco do líquido da garrafa de guaraná caçula.

Fomos direto para a emergência do Hospital Celso Ramos, no centro. Na sala de espera, o Polaco retirou o pano que cobria seu dedo para dar uma espiadinha. Imaginem a cara das pessoas que estavam em sua volta ao ver aquele anzol cravado no dedo!  

Apareceu o atendente e chamou: - Dilvo Paupitz? Entramos. Um médico, novinho por sinal, talvez fosse um residente, foi logo brincando – parece que a pescaria não foi das melhores, não é mesmo? –Já vamos resolver isso. Deu umas espetadinhas de agulha na ponta do dedo. Era anestésico trazido por uma enfermeira. -Vou mostrar a vocês como é simples. Com um alicate de corte atorou a parte do anzol onde se prende a linha. Ainda com o alicate, forçou para dentro o que sobrou do anzol, fazendo com que a ponta aguda do mesmo aparecesse em outro ponto do dedo. Depois foi só puxá-lo pela ponta e, tudo resolvido, nem precisou de ponto. Tudo, não! Faltava o curativo.

O médico foi atender outro paciente e nos deixou numa sala ao lado nas mãos da  enfermeira. Uma moça alta, apesar da beleza não ser o seu forte, era muito simpática e brincalhona. Sentou-se numa banqueta, cruzou as pernas, estendeu uma toalha sobre as coxas para não sujar a calça branca que vestia e falou: –Sente-se aqui nessa cadeira perto de mim, Alemão! Ou tens medo de mulher? E o Polaco dando um sorrisinho amarelo ficou sentado naquela posição de “tirar cutícula na manicure”, com o braço esticado e a mão apoiada no colo dela. Um pequeno e rápido curativo.

Ao retornarmos pra casa, encontramos nossas mulheres com uma garrafa de vinho pela metade, aguardando os peixes.

Como meu parceiro de pescaria estava “dodói”, fui sozinho para o tanque, depois para o fogão, limpar e fritar um punhado de manjuvinhas que estavam no congelador da geladeira, sobra de um arrrastão feito no Campeche pelos pescadores nativos.

 

Osli Cunha    Junho de 2007.

    

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